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quinta-feira, 24 de março de 2016

Anatomia Corpo-alma-espírito


Como deseja que eu comece, senhor Alcméon?
Talvez Galeno tenha umas dicas de como usar aquela espada de dois gumes
Para me autodissecar

Aquela parte da máscara também, e a maquiagem do Palhaço Brigadeiro igualmente
Pele falsa igual aquela fabricada no PhotoShop por alguém que parece um ótimo espécime para isso

Estou com a serra, a faca afiada de palavras sanguinárias escorrendo pela lâmina
As fábulas e parábolas espirram das veias e artérias cerebrais, o encéfalo pulsante e repulsante, repulsivo
Consigo enxergar cada minuto de pavor que pesadeleou, cada delícia que sonhou
Seus temores, poucas virtudes expostas, diversas sinapses viciadas nas concupiscências
E até o último centésimo de segundo que o cerebelo manteve o equilíbrio corporal antes da inércia
e que a lei da gravidade impulsionasse a força magnética centrífuga dos corpos estáticos ao centro do planeta

Nas sinapses a alma ocultou-se e enviou-se a cada ponto corpóreo
À pele, trazendo o perfume carniceiro do suor para evidenciar o cansaço e o prazer carnívoro
Aos olhos, dilatando-os a cada lascívia, lacrimejando-os a cada beleza partida e perdida
Ou a cada fingida, sabe-se lá
À língua a cada mordida dentária o degustar da vide e do amargor do quiabo, ou do diabo, quiçá
Aguardando a fricção dos lábios em algum outro, lábios superiores e, porque não, os inferiores...
Desliza ao trapézio, deltoide, bíceps e tríceps, rumo aos flexores para fechar as falanges
que colidirão rumo ao bucinador doutro alguém cobertos de força, fúria e violência
Ou apenas em busca de um arco para esfrega-lo às cordas de um violino
que soprarão cantigas consoantes, dissonantes, afinadas ou com um "des" antes
contra os músculos auriculares, o martelo baterá na bigorna que vibrará o estribo no nervo
para a alma dançar, junto aos fêmures, patelas, tíbias, fíbulas, tarsos, metatarsos e falanges
Dependendo da canção, esses ossos podem estar cancerígenos,
tamanho o desgaste com o terror em partituras partidas e recortadas, sete notas perdidas

Repassada a liberação de feromônios, lendários sedutores da alma
Nasce a adrenalina que nos conduz aos atos libidinosos, profanos, proibidos, ou apenas aventureiros
A serotonina que nos embriaga mais do que o etanol do vinho
A dilatação advinda da dopamina e o relaxamento da endorfina
Minhas células de Leydig enlouquecidamente produzem testosterona
Loucas para encontrar com alguém com muito estrógeno e progesterona para ovular
Copular
Circuitos repassantes aos músculos penianos em movimentos repetitivos contra paredes vaginais
Versos marginais do fundo da alma vibram das cordas vocais em orelhas alheias

Antes que o que sobrou da somatotrofina desapareça e nada mais em nós cresça e apareça
E a epiderme, derme, hipoderme, vire e revire-se em rugas e pés-de-galinha
E todo o resto do corpo-alma comece a definhar e o estômago não consiga mais digerir
Ácido clorídrico invadindo erroneamente o duodeno, futuro sinal de apêndice inchado a explodir

Enquanto isso minhas grandes narinas alertam com o perfume das brumas da erva daninha
Per-fumada
Traqueia, brônquios, pulmões, alvéolos, preparem-se para um ataque nuclear
Cof, cof, cof, cof, cof
Pós após pó, o crack nas veias pulmonares indica ao miocárdio que veneno vai corpo adentro
Cada um dos capilares se manifestará um dia na queda capilar sobre mim
Minhas unhas manchadas e ao redor da íris a ponto de implodir os nervos oculares

Mas e o espírito, onde andou nessa dissecação?
Pelo visto está ainda deitado em seu caixão a espera de um alguém que o ressuscite, quem sabe

Não sei se irá


Mas nessa história insana que tornou-se minha exposição de entranhas estranhas
Apenas recomendo a vós, alunos e futuros, eu espero, autodissecadores
que o que sobrar desse cadáver ambulante que vos fala tenha uma sepultura digna com uma bela lápide
Algum epitáfio bonito, ou até aquela frase de caminhão
que do reto de algum caminhoneiro escapou como flatulência mortal.

 

Homenagem (ou quase) ao
anatomista alemão Gunther von Hagens, conhecido como Dr. Morte,
curador de uma das mais polêmicas exposições de arte, 
usando cadáveres humanos dissecados reais

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